quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O Compadre Lobisomem

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Minha avó tinha histórias maravilhosas. Eu adorava me assentar aos seus pés e ouvi-la contar com rara habilidade as histórias que vivera. Algumas eram muito engraçadas, porém outras me deixavam arrepiado. Nunca duvidei da veracidade dos acontecimentos; pra mim, vovó sempre esteve acima de qualquer suspeita. Jamais passou pela minha cabeça que aquelas histórias contadas com tanto realismo, pudessem ser inventadas por ela. Hoje, Vó Alice já não está mais aqui pra defender suas narrativas, mas alguns episódios que me foram passados por ela, frequentemente voltam à minha memória, e eu me pergunto: “Será que isso realmente aconteceu?”

Segundo vovó, o episódio que vou relatar aconteceu na década de 1920. Fazia pouco tempo que ela se casara, e como a maioria da população da época, vivia com meu avô numa casinha simples e relativamente distante de um distrito municipal de uma cidadezinha do interior de Minas que francamente não lembro o nome. Meu avô, que infelizmente não conheci, era homem letrado e dava aulas na escola pública. Vovó ajudava no orçamento pegando algumas costuras pra fazer. Viviam bem, sem nenhum luxo, mas para os padrões da época, não dava pra reclamar. Nos finais de semana, reuniam-se com as outras famílias pra comer juntos, contar “causos”, e realizar serestas que entravam noite adentro. Vó Alice tocava violão muito bem, e era sempre requisitada nessas ocasiões.

Foi numa dessas noites de sábado pra domingo que a notícia chegou à roda de amigos. Segundo Dona Dinorá, uma senhora gorda e admirada por seus quitutes, já fazia três meses que nas noites de lua cheia um lobo enorme vinha atacando na região. A especulação girava em torno da possibilidade de ser mais do que um lobo, mas um lobisomem. Todos concordavam com o fato de não existir lobo naquela área, portanto, nesse caso, só poderia se tratar de alguém que se transformava em lobo sob os efeitos da lua cheia, uma verdadeira maldição. Alguns se benzeram diante da notícia, outros como meu avô, riram a valer, assegurando que somente gente ignorante é que poderia acreditar numa coisa daquelas.

Dona Dinorá falava com tanta convicção, que as mulheres logo se impressionaram com o relato. Sustentou que no sítio de sua irmã, que ficava a menos de três léguas, o bicho destruiu um galinheiro inteiro e o estrago só não foi maior porque o cunhado afugentou o tinhoso a tiros quando já estava dentro do quarto do filho pequeno pronto pra abocanhar a criança. Na volta pra casa, minha avó, na dúvida, perguntou ao vovô o que ele achava. Ele, por sua vez, se divertia com a história, afirmando que tudo não passava de crendice popular. Porém, ainda naquele mês, no tempo da lua cheia, a história ganhou força quando Seu Aristides, marido de Dona Cotinha, veio com a notícia de que o tal lobo havia aparecido nas suas terras e, além de atacar o galinheiro, matou o cachorro que cuidava da sua casa. Seu Aristides jurou ter visto o bicho, que arrancou a cabeça do cachorro à dentadas.

Nessas alturas, minha avó já estava apavorada, e como Seu Aristides gozava de credibilidade elevada, vovô começou a considerar o caso. Na sua cabeça, a possibilidade de ser um lobisomem não existia, mas, talvez, pudesse ser um animal perigoso, e ele, como homem da casa, teria que tomar as suas providências. Foi então que resolveu visitar o compadre Tenório. Ele e sua esposa viviam numa casa a menos de meia légua da casa dos meus avós. Eram amigos há muito tempo, o que fez com que escolhessem vovô e vovó como padrinhos do primeiro filho, nascido há menos de um ano.

– “Então o compadre também tá com medo do lobisomem?” Perguntou o compadre Tenório, dando risada e fazendo pouco caso da visita de meu avô.
– “Não é isso, compadre. O que eu quero propor para o amigo, é uma cooperação mútua. Nós moramos perto, se formos atacados por algum animal desconhecido que possamos nos ajudar”. Vovô argumentou meio sem jeito.
 – “Fica descansado, compadre. O tal lobisomem não vai aparecer”. Falou e riu exageradamente, debochando do zelo do Vô Hermínio. Chateado com a zombaria do amigo, vovô voltou para a casa, achando que realmente havia feito papel de tolo. Não se perdoava por ter se deixado envolver pelas conversas que se multiplicavam na região.

Mês seguinte, noite clara, e a lua cheia novamente aparece iluminando o céu. Depois do jantar, assentados na varandinha da casa, vovô e vovó conversam sobre amenidades. Gentilmente, vó Alice serve um chazinho pra ajudar na digestão. Noite tranquila. De repente, um som seco ecoa no ar.
– O que foi isso, Hermínio?
– Acho que foi um tiro, Alice!  – respondeu vovô, com ar de preocupação.

A localidade onde moravam era muito pacata, se realmente aquele som fosse de um tiro, era motivo suficiente pra se preocupar. Não tiveram dúvida de que o barulho viera da casa do compadre Tenório. Vovô se preparou para averiguar o que acontecera, não queria que minha avó fosse com ele. Ela, porém, recusou-se a ficar sozinha à espera de notícias. Em virtude da insistência da esposa, vovô concordou em levá-la. Preparou a charrete e saíram em direção à casa do vizinho compadre. Em poucos minutos lá estavam. O clima era de mistério: a luz amarelada do lampião iluminava precariamente a varanda, a porta da sala entreaberta sugeria uma interrogação.

Meus avós desceram da charrete e caminharam em direção à casa. Abriram a porta e entraram. Jogada no chão estava a espingarda que há pouco havia sido usada. Num canto da sala, em estado de choque, estava a comadre Maria, agarrada ao filho. Vovó insistia em querer saber o que havia acontecido naquele lugar, mas comadre Maria não conseguia dizer nada. Mais experiente, vovô procurou acalmá-la, servindo-lhe um pouco de água com açúcar. Depois de alguns minutos, recomposta, comadre Maria contou o terror pelo qual passara. Pegou no chão o resto da manta de lã que cobria o filho e que fora deixado pelo lobo quando a comadre disparou contra ele. Ao lado da porta ficou o buraco da bala que raspou a orelha da fera.

Intrigados, meus avós quiseram saber por onde andava o compadre Tenório. Comadre Maria não soube dizer, pensou que estivesse no galpão guardando algumas ferramentas. Não demorou muito, para que ele entrasse pela porta. Vovô foi logo dizendo:
– “Tenório! Por onde você andava? O lobo esteve aqui e quase pegou o seu filho!”

– “Você ainda não desistiu dessa tolice, Hermínio?” falou o compadre, às gargalhadas. Nos seus dentes era possível ver os fiapos de lã da manta do filho, e do ferimento na orelha esquerda o sangue pingava.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Carolinas e Janelas

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“Eu bem que mostrei a ela, o tempo passou na janela, só Carolina não viu”. 
Chico Buarque
  
Fazia da fantasia,
jeito de amar.
Castelos e príncipes,
donos do sonho.
Guache no papel sem brilho.
O que não era jamais seria,
e o que foi, seria o mesmo.
Mas, sonhadora,
no engano se iludia,
jurando que um dia,
assim seria,
do jeito que sonhara.

E o tempo passou na janela...

sábado, 26 de outubro de 2013

Dizeres

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Dizeres,
saberes de quem diz.
Do dizer que,
sem ser,
faz parecer.
Hábil falar.
Ilude, inflama,
acende a chama.
Depois vai embora
[em silêncio],
como se nada fora dito.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Seguir em Frente

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Da dor a poesia.
Manto que cobre a alma,
santo bálsamo que restaura
a força que se foi.
Diante do imponderável
[longe do razoável],
a certeza sem fatos.
Onde nada se explica,
é lá que se aplica a fé.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Melhor

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É a sorte quando forte sou -
morte do que queria me matar.
O corte que sangrou,
cicatriz se fez.
Obra do tempo
[quando o lamento deixa de ser prisão].

E a vida, inda que sofrida,
faz do pranto manto de cura.
No correr do tempo,
o sopro do vento a lágrima enxuga
[a alma expurga],
e me faz melhor.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Mais Rápido que Deus

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Geralmente, ele era mais rápido que Deus. Não tinha muita paciência pra esperar, suas ações careciam de reflexões. Mas, (fazer o quê?) esse era o seu jeito: “o campeão de arrancada” deixava Deus sempre pra trás. O chato de tudo é que, invariavelmente, sua velocidade fazia com que quebrasse a cara. Enquanto Deus, na sua sabedoria, pacientemente, aguardava a oportunidade de fazer algo na vida daquele afobado.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Limiar

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Quero a alegria de ouvir Tua voz,
e o prazer de Te obedecer.
Caráter de quem é de fato,
muito mais que um ato,
de quem só parece ser,
e se contenta com opinião alheia.
Mais que vida aparente,
vida consistente.
Base sólida: a Cruz.
Diária negação de mim mesmo,
das vontades que me povoam.
Morte de quem sou,
na afirmação de quem Tu és.

Não quero a ação impressionante,
quero o amor edificante.

Não quero a fama que faz fãs,
quero a Cruz que faz discípulos.
Não quero palcos e plateias
– fugaz prazer dos aplausos.
Quero o melhor lugar
– o Teu Altar –,
o quebrantamento que lá me leva
[me tira do pó e me eleva]
desfrutar da sua Glória,
me faz ser o que eu não era,
e me livra de quem sou.