Minha avó tinha histórias
maravilhosas. Eu adorava me assentar aos seus pés e ouvi-la contar com rara
habilidade as histórias que vivera. Algumas eram muito engraçadas, porém outras
me deixavam arrepiado. Nunca duvidei da veracidade dos acontecimentos; pra mim,
vovó sempre esteve acima de qualquer suspeita. Jamais passou pela minha cabeça
que aquelas histórias contadas com tanto realismo, pudessem ser inventadas por
ela. Hoje, Vó Alice já não está mais aqui pra defender suas narrativas, mas
alguns episódios que me foram passados por ela, frequentemente voltam à minha
memória, e eu me pergunto: “Será que isso realmente aconteceu?”
Segundo vovó, o episódio que vou
relatar aconteceu na década de 1920. Fazia pouco tempo que ela se casara, e
como a maioria da população da época, vivia com meu avô numa casinha simples e
relativamente distante de um distrito municipal de uma cidadezinha do interior
de Minas que francamente não lembro o nome. Meu avô, que infelizmente não
conheci, era homem letrado e dava aulas na escola pública. Vovó ajudava no
orçamento pegando algumas costuras pra fazer. Viviam bem, sem nenhum luxo, mas
para os padrões da época, não dava pra reclamar. Nos finais de semana,
reuniam-se com as outras famílias pra comer juntos, contar “causos”, e realizar
serestas que entravam noite adentro. Vó Alice tocava violão muito bem, e era
sempre requisitada nessas ocasiões.
Foi numa dessas noites de sábado
pra domingo que a notícia chegou à roda de amigos. Segundo Dona Dinorá, uma
senhora gorda e admirada por seus quitutes, já fazia três meses que nas noites
de lua cheia um lobo enorme vinha atacando na região. A especulação girava em
torno da possibilidade de ser mais do que um lobo, mas um lobisomem. Todos
concordavam com o fato de não existir lobo naquela área, portanto, nesse caso, só
poderia se tratar de alguém que se transformava em lobo sob os efeitos da lua
cheia, uma verdadeira maldição. Alguns se benzeram diante da notícia, outros
como meu avô, riram a valer, assegurando que somente gente ignorante é que
poderia acreditar numa coisa daquelas.
Dona Dinorá falava com tanta
convicção, que as mulheres logo se impressionaram com o relato. Sustentou que
no sítio de sua irmã, que ficava a menos de três léguas, o bicho destruiu um
galinheiro inteiro e o estrago só não foi maior porque o cunhado afugentou o
tinhoso a tiros quando já estava dentro do quarto do filho pequeno pronto pra
abocanhar a criança. Na volta pra casa, minha avó, na dúvida, perguntou ao vovô
o que ele achava. Ele, por sua vez, se divertia com a história, afirmando que
tudo não passava de crendice popular. Porém, ainda naquele mês, no tempo da lua
cheia, a história ganhou força quando Seu Aristides, marido de Dona Cotinha,
veio com a notícia de que o tal lobo havia aparecido nas suas terras e, além de
atacar o galinheiro, matou o cachorro que cuidava da sua casa. Seu Aristides
jurou ter visto o bicho, que arrancou a cabeça do cachorro à dentadas.
Nessas alturas, minha avó já
estava apavorada, e como Seu Aristides gozava de credibilidade elevada, vovô começou
a considerar o caso. Na sua cabeça, a possibilidade de ser um lobisomem não
existia, mas, talvez, pudesse ser um animal perigoso, e ele, como homem da
casa, teria que tomar as suas providências. Foi então que resolveu visitar o
compadre Tenório. Ele e sua esposa viviam numa casa a menos de meia légua da
casa dos meus avós. Eram amigos há muito tempo, o que fez com que escolhessem
vovô e vovó como padrinhos do primeiro filho, nascido há menos de um ano.
– “Então o compadre também tá com
medo do lobisomem?” Perguntou o compadre Tenório, dando risada e fazendo pouco
caso da visita de meu avô.
– “Não é isso, compadre. O que eu
quero propor para o amigo, é uma cooperação mútua. Nós moramos perto, se formos
atacados por algum animal desconhecido que possamos nos ajudar”. Vovô
argumentou meio sem jeito.
– “Fica descansado, compadre. O tal lobisomem
não vai aparecer”. Falou e riu exageradamente, debochando do zelo do Vô
Hermínio. Chateado com a zombaria do amigo, vovô voltou para a casa, achando
que realmente havia feito papel de tolo. Não se perdoava por ter se deixado
envolver pelas conversas que se multiplicavam na região.
Mês seguinte, noite clara, e a
lua cheia novamente aparece iluminando o céu. Depois do jantar, assentados na
varandinha da casa, vovô e vovó conversam sobre amenidades. Gentilmente, vó
Alice serve um chazinho pra ajudar na digestão. Noite tranquila. De repente, um
som seco ecoa no ar.
– O que foi isso, Hermínio?
– Acho que foi um tiro,
Alice! – respondeu vovô, com ar de
preocupação.
A localidade onde moravam era
muito pacata, se realmente aquele som fosse de um tiro, era motivo suficiente
pra se preocupar. Não tiveram dúvida de que o barulho viera da casa do compadre
Tenório. Vovô se preparou para averiguar o que acontecera, não queria que minha
avó fosse com ele. Ela, porém, recusou-se a ficar sozinha à espera de notícias.
Em virtude da insistência da esposa, vovô concordou em levá-la. Preparou a
charrete e saíram em direção à casa do vizinho compadre. Em poucos minutos lá
estavam. O clima era de mistério: a luz amarelada do lampião iluminava
precariamente a varanda, a porta da sala entreaberta sugeria uma interrogação.
Meus avós desceram da charrete e
caminharam em direção à casa. Abriram a porta e entraram. Jogada no chão estava
a espingarda que há pouco havia sido usada. Num canto da sala, em estado de
choque, estava a comadre Maria, agarrada ao filho. Vovó insistia em querer
saber o que havia acontecido naquele lugar, mas comadre Maria não conseguia dizer
nada. Mais experiente, vovô procurou acalmá-la, servindo-lhe um pouco de água
com açúcar. Depois de alguns minutos, recomposta, comadre Maria contou o terror
pelo qual passara. Pegou no chão o resto da manta de lã que cobria o filho e
que fora deixado pelo lobo quando a comadre disparou contra ele. Ao lado da
porta ficou o buraco da bala que raspou a orelha da fera.
Intrigados, meus avós quiseram
saber por onde andava o compadre Tenório. Comadre Maria não soube dizer, pensou
que estivesse no galpão guardando algumas ferramentas. Não demorou muito, para
que ele entrasse pela porta. Vovô foi logo dizendo:
– “Tenório! Por onde você andava?
O lobo esteve aqui e quase pegou o seu filho!”
– “Você ainda não desistiu dessa
tolice, Hermínio?” falou o compadre, às gargalhadas. Nos seus dentes era
possível ver os fiapos de lã da manta do filho, e do ferimento na orelha
esquerda o sangue pingava.
2 comentários:
Laerte é com prazer que acesso sua pagina e ja a coloquei nos meus favoritos.
Fiquei feliz com sua volta, pois só engrandece.
Ainda vou ler este post, mas vim logo registrar minha alegria e adesão.
Um abração amigo.
Vamos neste canto tambem em sintonia.
Muito bom este causo Laerte. Eu menino vivi sob este clima de medo lá num cantinho das Minas Gerais ouvindo estas historias e meus olhos até viram coisas na quaresma tamanho era o medo. tempo de pouca luz ou quase nenhuma. Os causos se proliferavam nas noites junto a um fogão à lenha onde se preparava um mingau de fuba com queijo e canela.
Muito bom amigo.
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